terça-feira, 21 de abril de 2009

A febre de Tiê - Realizada com seu primeiro disco, a cantora Tiê anda na contramão das novas musas da MPB

Santiago, 15 de janeiro de 2006. Passava das dez da noite e lá fora as ruas da capital chilena eram tomadas pelas come­morações da primeira mulher eleita presidente do país. En­quanto Michelle Bachelet discursava, numa casa de shows no cen­­tro da cidade Tiê ia perdendo a voz. Ardia em febre. Qua­ren­ta graus. Seu corpo era tomado por uma dormência que cerrava os olhos e desafinava as notas. Ela abandonou o palco antes do bis. Para só voltar dois anos depois.

A brasileira embarcou para seu país deixando o compositor To­­quinho sem voz de apoio. Era o segundo ano que Tiê o acom­­pa­nhava em turnê. Estava feliz. Fazia duas entradas solo durante os shows e era a primeira vez que ganhava um fixo. Motivara-se, enfim, a virar cantora. Mas a febre não passava. Um, dois, três dias. Duas semanas. Consultas, exames, incertezas. “Foi uma por­rada ouvir, aos 26 anos, que podia morrer”, lembra ela. “Não saber o que ia acontecer, bem no momento em que pensava se minha carreira daria certo.” A tomografia apontou um tumor no pulmão.

“É ruim falar de doença”, preocupa-se. “Mas foi um processo incrível. Depois de tudo isso comecei a compor.” Tiê foi submetida a uma cirurgia de emergência quando não tinha mais força nem para comer. “Estava verde”, conta. O tumor era benigno e o diagnóstico, um possível lúpus – doença autoimune. “A conclusão é que tenho um sistema imunológico fraco.” Por isso, brinca que não seria uma cantora junkie: “Não pos­so encher a cara, eu mesma pre­paro minha comida e nado 2 mil me­tros todo dia”, lista ela, que le­vou seis meses para se recuperar.
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LADO OPOSTO
Durante o mergulho involuntário pra dentro de si, Tiê gerou seu disco de estreia, Sweet Jardim. As letras, confessionais, são acompanhadas por uma batida folk. A faixa “Chá-verde” remete à época do tratamento, quando ingeria litros da bebida, indicada pe­lo acupunturista chinês. “Era estressada e insegura. Aprendi a ter paciência e comecei a gostar do que compunha. Se aquilo fosse verdade pra mim, alguém no mundo ia gos­tar”, revela.


Antes de perceber a vocação para compor, Tiê, além de cantar sambas antigos na banda de Toquinho, “toda comportada”, também subia no palco do clube Vegas com o projeto Cabaret, em par­ceria com o produtor Dudu Tsuda – te­cla­dista do Pato Fu e integrante da banda Trash Pour 4. Se­manalmente, a dupla animava a casa com performances: “Eu cantava de maiô e cartola, de cinta-liga”. Por mais que se divertisse na noite e visse a car­reira se profissionalizar com Toquinho, ela queria trilhar seu caminho. Hoje, conclui: “Todos os personagens que criei eram para me proteger de alguma coisa. Esse dis­co é o oposto disso, é o íntimo do íntimo”. Entre as intimidades está “Passa­ri­nho”, na qual re­vela o porquê de seu nome. Na letra, confessa que “já quis ser Maria”.

Tiê, que “nasceu com nome artís­ti­co”, foi criada no bairro paulistano de Per­di­zes e por pouco não cresceu em meio aos ín­dios. Isso caso sua mãe tivesse da­do à luz no Parque Indígena do Xingu, no Ma­to Gros­­­­so. Antes de saber da gra­vi­dez, o pai optou por largar o consultório de odon­to­logia pa­ra viver entre os índios. Mas a mãe decidiu: não teria a filha no meio do mato. Foi assim que ela nasceu longe do pai, e só conheceu o meio-irmão mais novo, “ca­çador e pescador”, na úni­ca visita aos dois, aos 19 anos. Mais tarde, do segun­do casamento da mãe, Tiê ganhou outro irmão, Gianni Dias, tam­bém músico.

Foi grudada na mãe e na avó, a atriz Vi­da Alves – protagonista do primeiro bei­­­­­jo da TV brasileira –, que cresceu. Aos 12 anos, para ajudar nas contas, entrou na Ford Models. Estampou capas de Ca­pri­cho, Que­rida, fez comerciais e passou duas tem­po­radas no Japão. Na volta da viagem, aos 15, cansou: “Me deu um fastio, achei tu­­­do um saco”. Fator decisivo foi a apa­rição de man­­chas brancas no rosto por cau­­sa do vitili­go (doença de fundo emo­cio­­nal que ini­be a pig­mentação da pele), atribuído à rela­ção delicada com o pai. Ho­je, aos 29, as man­­chas são imper­cep­tíveis. “Assumi que não gosto de praia. Ia pra Ilhabela, enchia a ca­ra de Hipo­glós, en­rolava um lenço na ca­­beça, parecia uma Madonna louca”, diverte-se.

A opção pelos palcos aconteceu quando a elegeram melhor cantora do Fico (Fes­tival Interno do Colégio Objetivo), em 1997. Foram, então, anos de aulas de canto, mes­cladas com o curso de relações públicas na Faap, uma temporada em Nova York produzindo o BrasilFest (festival de música bra­­sileira idealizado por Nelson Mot­ta) e cantando em bares. “Essa época era so­fri­da, não sabia cantar, nada me sa­tis­fazia”, de­sabafa. Já no Brasil, reencontrou um caso antigo e, aos 21 anos, se casou – na igreja – com o músico Diogo Po­ças. Se­pa­ra­ram-se em três anos, na época em que, com duas amigas, Tiê tocava o Café Bre­chó, um bar-loja em Perdizes.

Mas a cantora só foi se sentir cantora um ano atrás, quando, recuperada, caiu no Studio SP, casa de shows paulistana que vem se tornando uma vitrine de novos ar­tistas. Tiê tinha um EP com quatro can­ções e nenhum direcionamento. “O show era um desastre. Cantava algumas mú­si­cas, du­­blava outras, trocava de roupa em cena, sol­tava perfume de alecrim, um circo”, la­menta. Um dos sócios da casa, Alê Yous­sef, alertou: “Você precisa ensaiar a banda, ter um bom produtor e, só depois disso, fazer o que quiser. Você é compositora, va­loriza isso”. Tiê ouviu o conselho e, depois de três meses, entrou em estúdio e gravou Sweet Jardim, produzido por Plínio Profeta e patrocinado pelo Levis’ Music – projeto que apoia artistas estreantes. “O disco tem peque­nos erros. Mas prefiro assim em vez de uma coisa plastificada.”

São Paulo, 4 de março de 2009. Pas­sa­va das dez da noite e a casa estava lotada. Fi­la na porta. Apre­sentação de estreia de Sweet Jardim. Tiê não se abala com o zun- zunzum de quem estava ali só pela noitada. Era a primeira vez que subia no palco com repertório afinado e com a certeza de que tinha dado certo. No fim do show, sob aplausos – e depois do bis –, ela aban­­dona os palcos. Para sempre voltar.

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